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Música é feita com o quê?

(post da série O meu jeito de compor – clique para ver a série completa)

Com qualquer coisa se faz música. Enquanto lê este post, talvez você esteja cantarolando, tamborilando ou batucando em alguma coisa. Se ficar em silêncio por alguns segundos, vai lembrar que o silêncio não existe, e que diversos sons estão ao seu redor (objetos, máquinas, motores, animais, vento, sua respiração e, ainda que não houvesse nenhuma dessas coisas, ouviria seu próprio coração a bater). Etimologicamente falando, compor é colocar coisas juntas. Em música, compõe quem organiza sons, pré-existentes ou criados de propósito.

Quando resolvo criar uma música, costumo lançar mão de diversos recursos. Um instrumento musical, como um piano ou teclado eletrônico, é geralmente um companheiro em todos os passos do processo. Outro suporte que utilizo muito é a notação musical, uma linguagem visual extremamente rica e aberta ao que sua imaginação puder inventar. Além disso, instrumentos de gravação e processamento de sons são também um recurso importante e, neste caso, há uma infinidade de possibilidades, entre monitores de áudio, fones, gravadores, microfones, controladores, softwares de produção musical, processadores de áudio analógicos e digitais, etc., etc., etc., etc., et., e. … Se quisermos contemplar grosseiramente todas essas possibilidades, poderíamos estabelecer um kit básico (e portátil) mais ou menos assim:

Da esquerda para a direita: um computador (difícil viver sem hoje em dia), um microfone para gravar sons, uma placa de som, um HD pra armazenar arquivos de áudio, um teclado que permita experimentar combinações de notas (ligado ao computador via MIDI, esse pequeno instrumento faz milagres). E no meio, claro, o bom e velho papel pautado.

Evidentemente, as necessidades vão variar de situação para situação. Nada me impede, por exemplo, de fazer música só com papel pautado, escrevendo diretamente com a imaginação; ou senão usar somente um instrumento para bolar tudo, sem precisar escrever a música. Da mesma forma, é perfeitamente possível (e cada vez mais comum) trabalhar diretamente no computador, gravando e compondo através de um sequenciador digital, sem nunca “tocar” a música inteira, nem escrevê-la. Há casos em que outros instrumentos são necessários para se compor. Para mim, isso acontece quando tenho que criar música para violão ou outros instrumentos harmônicos além do piano, pois não consigo imaginar as posições de mão sem consultar diretamente no instrumento. A mesma coisa acontece quando você cria música para instrumentos de percussão: o ideal é tê-los à mão para experimentar suas nuances sonoras e possibilidades de combinação. No fundo, todo o compositor sonha em ser ofensivamente rico para contratar uma orquestra que fique esperando numa sala, enquanto ele compõe o que quiser, para depois tocar e ajudá-lo a ouvir e revisar seu material, até alcançar a perfeição :). Mas temos que manter os pés no chão, certo? E, além disso, dá pra se divertir muito e fazer chover com poucos recursos, isso eu garanto até com um toquinho de lápis e um pedaço de papel.

Em qualquer caso, há dois grandes suportes sobre os quais costumamos pensar, veicular e consumir música: a partitura e a gravação. Embora não sejam de forma nenhuma excludentes entre si, há diversas particularidades culturais que guiam sua utilização, e nem sempre uma música vai precisar de partitura e/ou de gravação. A partitura vem “dos antigamente”, e é bom lembrar que, antes dos fonogramas, ouvir música significava necessariamente tocar música. Por isso, até fins do século XIX, a partitura era o único meio de veiculação e comercialização de conteúdos musicais. Por causa disso, ter um instrumento (tipicamente um piano) em casa era sinal de distinção social na Europa e no mundo ocidentalizado: não somente por haver alguém aprendendo a tocar esse instrumento, mas também, e principalmente, por que naquela casa havia possibilidade constante de se ter música soando.

Com o advento do comércio de música gravada, a partitura cede lugar aos discos (hoje arquivos digitais de áudio) como principal meio de consumo musical. Um outro efeito desse fenômeno é o fato de culturas musicais não eurocêntricas, baseadas em tradições orais de conhecimento, encontrarem na gravação um meio de difusão que não passasse pela notação musical, que afinal é um suporte nem sempre efetivamente adaptável a esses contextos culturais. É assim que, a partir do século XX, começam a surgir músicos profissionais cuja formação está baseada na sua relação com as gravações musicais, mais do que com a produção e interpretação de partituras. Disso resulta que hoje é perfeitamente possível ser músico e não usar partitura, embora essa restrição não tenha em si nada de positivo.

Do ponto de vista da composição, usar partitura, gravação, ou ambas as coisas, é algo que depende de cada situação. Em culturas musicais próximas ao universo pop, há uma relação mais próxima com as gravações, e escrever uma partitura pode ser algo praticamente inútil, já que as complexidades dessas culturas não podem ser representadas nesse tipo de notação. Por outro lado, se você trabalha com músicos ligados à tradição euroclássica, ou com grandes grupos instrumentais de qualquer gênero musical, é praticamente impossível prescindir da partitura como meio de comunicação, pois se mantém muito presente nesses âmbitos e faz parte do dia-a-dia de sua produção musical. Em muitos casos, a relação entre partitura e gravação/oralidade é uma espécie de casamento, em que ambas as partes têm um papel importante a cumprir no pensamento e comunicação musical. Em práticas tradicionais de jazz, por exemplo, é comum a utilização de partituras menos completas, contendo somente uma estrutura melódica e cifras de acordes. Esse tipo de notação, chamado de partitura-guia (lead sheet, em inglês), convém a gêneros mais abertos à improvisação durante a performance, onde se quer apenas uma estrutura de base sobre a qual criar a música enquanto se toca. Para que possa transitar por esses ambientes, acredito que um compositor ou produtor musical deveria saber lidar tanto com a notação musical quanto com a gravação e manipulação de sons. Minha experiência me diz que ambos os caminhos se complementam e são constantemente requisitados no trabalho cotidiano da criação musical. Com isto em mente, lhes ofereço a seguir dois exemplos de utilização desses suportes em meu trabalho, com comentários que tornem toda a discussão proposta acima mais acessível.

Primeiro exemplo: A composição de “Dimensidão” em sequenciador digital

Este primeiro exemplo é o de uma composição feita sobre gravações sonoras. Há alguns anos que costumo levar meu gravador portátil por aí e captar paisagens sonoras, por puro hobby. Na época em que morava no município de Bagé/RS, quase na fronteira entre Brasil e Uruguai, pegava a bicicleta e saia a coletar sons dos subúrbios, e alguns desses sons vieram a ser utilizados na minha composição chamada “Dimensidão” (uma espécie de mescla entre “dimensão” e “imensidão”, com o perdão dos professores de português :P). São essencialmente sons de insetos, de meus passos em ruas de chão batido, de pessoas conversando, de veículos automotores e, principalmente, cachorros latindo. Minha ideia inicial era jogar esses sons no computador, picotá-los e processá-los e compor alguma coisa eles. Durante o processo composicional, no qual utilizei o software Reason (contemplado em um dos cursos de criação musical da PianoClass), decidi acrescentar a isso alguns beats, sintetizadores e sampleadores, buscando uma espécie de transcendência entre os sons concretos da rua e aqueles produzidos com o computador. Finalmente, acabei jogando em cima de tudo alguns estilhaços da canção “Longe de Você”, do Vitor Ramil, cuja temática de dimensões alternativas influenciou na escolha do título de minha composição. O resultado é este aqui:

Segundo exemplo: a composição de “Vagando”, para piano

Este segundo exemplo é um caso completamente distinto. Ele surgiu de uma brincadeira que eu vivia fazendo no piano, que consistia em repetir aquele material dos dois primeiros compassos da peça como um groove, e ficar improvisando em cima disso. Tanto brinquei, tanto brinquei que decidi escrever uma música com isso, até para ver se expurgava de mim essa obsessão com esse groove (por incrível que pareça, funcionou: desde essa composição, creio que não voltei a improvisar com esse material). “Vagando” foi assim uma composição feita entre improvisação e partitura. Eu inventava coisas tocando, e depois adaptava isso para a partitura. Minha intenção foi manter o groove como gesto central, como ponto de partida e chegada para novas improvisações. Nesse sentido, é importante observar e explicar uma coisa que muitas pessoas não entendem sobre o processo de produção musical. É o seguinte: o fato de eu compor uma música, escrevendo-a em partitura, não significa que eu sei tocar perfeitamente esta música! Eu já escrevi música para tuba solo, por exemplo, porém jamais segurei uma tuba entre os braços, que dirá produzir um som com esse instrumento. O compositor, em princípio, precisa de instrumentistas que ponham suas ideias em prática, pois não pode tocar todos os instrumentos, muito menos tocá-los bem!

No caso de “Vagando”, mesmo sendo uma peça composta no e para o meu instrumento, não sai tocando-a imediatamente. De fato, depois de ter feito, editado e imprimido a partitura, precisei ainda de umas 3 semanas para aprender a tocar esse troço que eu mesmo havia criado! Pois o resultado foi gravado no estúdio da Piano Class, em Pelotas, e está disponível aqui:

No próximo post, que é também o último da série, a pergunta que nos guiará é: quando é que a música termina, afinal?

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